On the Road, but not for all

29-05-2025

Em 2012 — ou talvez 2011, a memória pode ser traiçoeira — eu já carregava o deslumbre de uma vida socialmente ideal: a normatização do cansaço como status, o trabalho como identidade e o dinheiro como instituição suprema. Vivíamos, e ainda vivemos, em uma sociedade que celebra a produtividade como virtude e o esgotamento como troféu.

Foi nesse contexto que me deparei com Into the Wild (Na Natureza Selvagem), filme dirigido por Sean Penn e baseado na história real de Christopher McCandless, ou Alexander Supertramp. Formado com honras pela Universidade Emory, Chris doa todas as suas economias, abandona a família e parte em uma jornada solitária rumo ao Alasca, em busca de uma vida mais autêntica, longe das amarras do sistema. Aquilo me atravessou como um soco no estômago.

A narrativa de Supertramp foi a primeira vez que me senti vista, compreendida, como se mais alguém, em algum lugar, sentisse o mesmo que eu. De repente, a vida parecia ser sobre experiências — mas não aquelas vendidas em pacotes turísticos ou promovidas por revistas como Capricho e Toda Teen. Eram experiências nascidas da incerteza, da ausência de rota, da partilha sincera e dos laços criados, ou desfeitos, ao longo do caminho. A vida revelava, enfim, suas bifurcações.

Há uma certa glória romântica nessa imagem de "largar tudo", como se, ao partir, nos redimíssemos magicamente do peso de ficar. Mas será que todo mundo pode, de fato, largar tudo?

Essa pergunta me acompanhou por quase uma década. Porque o nomadismo, seja o de Supertramp, o de Kerouac em On the Road ou o dos influenciadores digitais, quase sempre exige um ponto de partida confortável. Largar tudo é mais fácil quando se tem para onde voltar.

Lembro da primeira vez que li On the Road. Era uma adolescente inquieta, sedenta por transgressão e por sentido. Encontrava conforto em The Smiths e achava que ser diferente era uma originalidade minha. Boba eu, mal sabia que a crise existencial é tão intrínseca ao ser humano quanto a vontade de liberdade que acompanha o ser humano desde Adão e Eva. Kerouac e seus amigos pareciam viver com urgência poética, atravessando cidades, escrevendo em guardanapos. Aquilo me seduziu. Mas, com o tempo, percebi que até os desajustados brancos da geração beat tinham seus privilégios: passaportes válidos, famílias estruturadas, espaço social para errar e voltar.

O nomadismo digital, herdeiro dessa mesma mitologia da liberdade, continua vendendo a promessa de que qualquer um pode viver de Wi-Fi e café em qualquer canto do mundo. Mas o que não se mostra nos reels é o preço disso — em moeda, em estabilidade emocional, em passaporte e, muitas vezes, em solidão.

Eu mesma tentei esse caminho. Larguei o emprego fixo como Jovem Aprendiz em uma multinacional no bairro nobre de São Paulo, comprei uma mochila maior do que eu e fui ser "livre". Dormi no chão, trabalhei de chinelo em hostel, fiz reuniões com fuso trocado. Conheci gente incrível. Mas também enfrentei a conta bancária vazia, a falta de um lugar para chamar de casa, a ansiedade de não saber o que seria do amanhã. Descobri que a estrada não cura nada sozinha. Às vezes, ela só muda a paisagem dos mesmos fantasmas.

Por que seguimos romantizando a fuga? Por que acreditamos que mudar de cidade, país ou paisagem nos libertará de nós mesmos? Será que buscamos um novo lugar ou apenas uma versão de nós que ainda não conseguimos encontrar?

Hoje entendo que nem todo mundo pode largar tudo — e tudo bem. Existe um recorte social. Afinal, o "tudo" pode significar uma mãe que trabalha em três turnos para sustentar os filhos. Ou pode ser uma criança cujo único passeio concedido era a visita ao pai na prisão que ela nunca teve a chance de conhecer fora das grades.

A liberdade não está apenas no ato de partir, mas também na coragem de permanecer, ou de aceitar que, embora o caminho esteja aberto a todos, nem todos estão prontos para ele. Reinventar-se em territórios conhecidos ou encontrar beleza no cotidiano também são formas legítimas de seguir. Ou, o que nos define como adultos é a capacidade racional de aceitar que nem todos os nossos desejos serão concedidos.

Minha última grande crise foi há dois anos. Eu me recusava a aceitar que precisaria de um emprego de oito horas por dia para pagar o aluguel, as contas e a comida. Lembro de abrir a janela da cozinha, que dava de frente para um parque, o dia estava ensolarado, e havia tanta tristeza dentro de mim. Eu me consolava — porque ser adulto é, muitas vezes, ser seu próprio pai e sua própria mãe — e repetia para mim mesma que a vida era sobre escolhas. Se eu queria chuveiro quente, cama confortável e uma vida ao lado dos meus gatos, talvez a estrada já tivesse sido, mas não era o meu lugar naquele momento. E o preço do que eu queria, naquele instante, era um trabalho de oito horas por dia em algo que eu não amava, mas que cumpria seu papel: trocar meu tempo por dinheiro.

Largar tudo é, sim, um privilégio. E isso dói admitir, porque preferimos acreditar que basta coragem, que um simples desejo nos leva onde queremos. Mas coragem sem rede vira desespero. Não nego o valor do movimento — acredito profundamente no poder da estrada — mas me inquieta a narrativa vendida como universal. Nem todo mundo tem o "tudo" para largar. E isso não torna ninguém menos livre, apenas torna a conversa mais honesta. Ou, até mesmo aqueles que possuem condições financeiras sólidas para comprar uma van e atravessar a América do Sul ou ter um ano sábado na Ásia, o "tudo" para essas pessoas podem simbolizar a família, o bairro conhecido, a livraria de domingo, a feira da Benedito Calixto ou um investimento na aposentadoria. Porque ser livre, também é cuidar do futuro.

Acredito, honestamente, que essa experiência que poderia ser formadora para tantos, em um mundo igualitário não é sinônimo de luxo, mas de escolha. Eu acredito que todos deveriam ter a chance de, pelo menos uma vez na vida, viajar para um país distante. Aprender uma nova língua, se perder em outras ruas, comer com as mãos, falar errado e ser entendido mesmo assim. Ver o mundo por outros olhos é um jeito bonito de rever os nossos próprios.

Se hoje eu enxergo com clareza tantas coisas — inclusive o peso real da liberdade — é porque um dia tive base para largar tudo. Vivi o improviso, o risco, a aventura. E, justamente por isso, hoje penso na velhice, na importância de ter uma reserva, um plano, algum chão. Eu me contento com a Eurotrip nas férias, na viagem de fim de ano. Penso nisso porque pude não pensar por um tempo. O que eu sei, sei porque vivi. E eu só vivi porque tive o privilégio de poder partir.

Hoje, percebo que há outros modos de nomadismo — internos, mais silenciosos, mas nem por isso menos potentes. Escrever, por exemplo, é uma travessia. Cada frase é uma tentativa de partir sem sair. Como diria Virginia Woolf, "não há portões, trancas ou fechaduras que possamos impor à liberdade da mente".

Talvez, no fim, seja isso. A estrada que me interessa agora não é mais a dos aeroportos, mas aquela que me leva de volta para mim. Como Clarice, sigo tentando nomear o que me falta. Como Caio, escrevo cartas que talvez nunca sejam lidas. E como Kerouac, ainda acredito que há beleza na estrada — mas sei, agora, que ela nem sempre está do lado de fora.

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